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Balneário Camboriú
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Violência doméstica e feminicídio: casos reais relembram o quanto precisamos falar e denunciar

Casamentos de mais de 20 anos, namoros de colégio ou da faculdade, ficantes que se conheceram há poucos dias… não há um perfil de relacionamento que ‘justifique’ a violência doméstica acontecer. Ela, infelizmente, pode surgir de uma hora para outra. E pode ser fatal. Engana-se quem pensa que o agressor é apenas o marido ou namorado – há casos envolvendo até mesmo irmãs ou mães, que sofrem nas mãos de irmãos ou filhos. Passou do tempo de usar a frase ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’. Mete a colher, o garfo, o que for… é preciso intervir e salvar uma vida. 

82% das mulheres vítimas de feminicídio em Santa Catarina não denunciaram seus assassinos por violência doméstica – segundo os números do balanço da criminalidade de 2021, divulgados em 18 de janeiro. O levantamento registrou 55 feminicídios em 2021. Em 2022, esse número já chegou a oito. 

Os números de violência doméstica também cresceram em 2021: 67.420 mulheres foram vítimas de algum tipo de violência (ameaça, calúnia, injúria, difamação, estupro, lesão corporal dolosa ou vias de fato) em Santa Catarina – 4.834 (6,5%) a mais do que em 2020.

Nesta reportagem especial, o Página 3 trouxe casos reais de vítimas de violência doméstica e até mesmo de feminicídio – como de Indira Mihara Felsky Krieger, de 35 anos, encontrada morta em seu apartamento no dia 8 de janeiro.

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Casos diários

Diariamente, a Polícia Militar e a Guarda Municipal encaminham à imprensa ocorrências policiais atendidas por eles. Dentre elas, semanalmente – às vezes mais de uma vez por semana – surgem casos de violência doméstica.

O último caso foi na madrugada de quarta-feira (9), por volta de 00h30. Guardas municipais receberam uma denúncia via Central 153 sobre violência doméstica, na Praia dos Amores. No local, se depararam com uma discussão.

A vítima relatou que o relacionamento dela e do homem que estava com ela havia acabado, mas que ele a perseguia constantemente e ameaçava se matar caso esta não reatasse o relacionamento, além de a agredir. O homem foi preso. 

Marcas na família

O Página 3 conversou com uma moradora de Balneário Camboriú de 29 anos, que preferiu permanecer em anônimo. Ela conta que a violência doméstica infelizmente está presente em sua família – a irmã mais velha, de 33 anos, vive em um relacionamento abusivo há três anos, já apanhou diversas vezes e até mesmo recebeu ameaças de morte por parte do companheiro, mas segue voltando para ele. Neste momento os dois estão separados, mas a moradora acredita que devem voltar. “Fico brava, falo para ela denunciar, mas parece que não adianta. Ela surge toda roxa, e ainda justifica, diz que ele é bom, que não é sempre que bate nela. Eu não entendo como ela consegue dormir todos os dias com alguém assim. Ele (o cunhado e agressor) já fez ela se ajoelhar e implorar para ele não matar ela”, diz.

A violência também chegou mais próxima da moradora – em janeiro, outro irmão dela, que é usuário de drogas, brigou com a família e, para atingi-la, jogou uma faca em direção ao filho dela, de apenas oito anos. O caso está sendo acompanhado pela justiça e a família possui medida protetiva e está sendo assistida pela prefeitura, através do programa Abraço. “O atendimento está sendo muito bom, acredito que vamos ficar bem”, afirma.

Feminicídio: relato de Céres Felsky, médica e irmã de Indira Mihara

Entre os oito feminicídios que aconteceram em Santa Catarina no mês de janeiro, está o da servidora do judiciário de Itajaí, Indira Mihara Felsky Krieger, de 35 anos, morta por asfixia, em seu apartamento, no dia 8, por volta de 23h. 

O principal suspeito é Leonardo Trainotti, 28 anos, que namorava a vítima há quatro meses e está preso preventivamente. Nesta terça-feira aconteceu a missa de 30 dias em Itajaí. 

A médica Céres Felsky, de Balneário Camboriú, que encontrou o corpo de sua irmã caçula, não consegue entender, aceitar esse fato que parecia algo tão distante da sua vida. Até poucas semanas, ela trabalhava nos programas Abraço, da prefeitura, atendendo e ajudando pessoas que sofriam violência. Saiu para ocupar um cargo na direção do Hospital Municipal Ruth Cardoso.  Hoje está de volta ao programa Abraço, só que agora ‘do outro lado da mesa’: está recebendo ajuda.

Como impedir que crimes como este continuem acontecendo?

Vamos reduzir criando homens que respeitem e valorizem as mulheres, falando muito sobre o assunto, estando disponíveis para ajudar as outras mulheres”, respondeu a médica ao Página3.

Acompanhe o depoimento que Céres escreveu após a missa de 30 dias:

Indira e Céres (Arquivo Pessoal)

“Setecentas e vinte e nove horas do dia mais terrível de minha vida. Trinta e um dias que não consigo mais dormir direito, não me alimento, e vivo com uma bola na garganta. 

Choro todos os dias. 

Trabalho até para me distrair e mudar o foco… mas cada vez que fecho os olhos, mesmo que para um piscar mais prolongado, a imagem do corpo de minha irmã inerte sobre a cama me faz entrar em desespero. 

Todos os dias refaço as horas daquele dia, passo a passo… todos os dias entro de novo no apartamento e encontro o corpo dela. 

Todos os dias morro novamente um pouquinho, junto com ela.

Não era pra ser assim! 

Ela deveria ter feito o papel de irmã caçula direito e ter ido pra alguma balada sem que a gente soubesse. 

Ela deveria ter desaparecido por uma boa causa: ser rebelde como todo irmão caçula. 

Deveria ter esquecido o celular no silencioso, e ter perdido a hora em risadas com as amigas. 

Ela deveria ter podido continuar sorrindo. 

Eu só queria que o tempo voltasse o suficiente para eu chamá-la pra uma conversa e perguntar se estava tudo bem. Queria ter dito mais uma vez que ela sempre podia contar comigo, pra qualquer coisa (até pra acobertar os furos). 

Olhar por mais um segundo nos olhos risonhos dela e ver se era de verdade o sorriso. Queria mais um abraço…

A verdade é que eu me culpo hoje, assim como várias pessoas. 

Venho acolhendo as amigas da Indira, que se martirizam pensando no que poderiam ter feito para evitar esta tragédia. Ironicamente, talvez eu fosse a pessoa mais “obrigada” a isso. 

Eu trabalhava, até o fatídico dia, no Abraço, e atendia vítimas de violência doméstica. Como eu não reconheci os sinais? Como eu não vi a violência acontecendo na minha própria família? Eu não entendo… eu não aceito… 

A verdade é que a gente se cala. 

A gente até percebe um sinal ou outro, mas julga que não tem o direito de interferir na vida do outro. 

Em nome da privacidade, parte-se do pressuposto que se a pessoa precisar de ajuda, ela vai pedir. Mas nem sempre é fácil pedir ajuda, nem mesmo reconhecer que nós próprios podemos estar precisando de ajuda.

Assim acontece com a vítima: ela não reconhece que está sendo abusada e chega ao cúmulo de justificar o abusador. Sofre do complexo da Bela: passa a viver tentando transformar o Fera num príncipe. E, como príncipes encantados não existem, muitas Belas infelizmente acabam virando estatística, como minha irmã. E os agressores, oriundos deste abjeto sistema patriarcal que insiste em perdurar em nossa sociedade, vitimam não apenas as Belas, mas suas famílias por extensão”.


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