Memória & Histórias 30 anos JP3
(Equipe de funcionários e colaboradores)
Durante esses 30 anos de jornalismo do Página3, passaram pela redação dezenas de funcionários e colaboradores, esse relato é de um deles.
Era década de 1990, e Balneário Camboriú poderia ser chamado de Eldorado Brasileiro. O dólar era a moeda quase oficial trazida pelos hermanos argentinos que lotavam as praias, hotéis, restaurantes e baladas; e foram os responsáveis pela grande explosão imobiliária da cidade. Na esteira dos argentinos, vinham os ricos das cidades vizinhas, do interior do Paraná e do Rio Grande do Sul; era preciso lugar para acomodar tanta gente.
Os edifícios “cresciam” diariamente ao longo da orla, as ruas começavam a ser transformadas em avenidas. Junto com os investidores sedentos por construir, que trouxeram consigo os serviços afins, vieram os trabalhadores braçais: pedreiros, assentadores de azulejos, pintores. E longe da orla, nas margens da BR-101 eles se assentaram e formaram favelas. Uma delas, e uma das primeiras, chamava-se Monte Alegre.
Eu lembro bem, quando Balneário Camboriú fez 28 anos de emancipação da cidade de Camboriú, o então prefeito Leonel Pavan inaugurou 28 obras. Era um absurdo. Na temporada de 1990, a cidade recebeu um milhão de turistas para a virada de ano.
Alguém tinha que contar essa história de desenvolvimento que se acentuou especificamente nessa década. E foi neste cenário, que vi nascer o jornal Página 3, há exatos 30 anos. Os sócios, Waldemar Cezar, Marlise Schneider Cezar e Bola Teixeira formavam o trio que no meu imaginário eram o ideal de jornalistas: arrojados, independentes, corajosos.
A história do jornal Página 3 se confunde com minha trajetória jornalística. Recém demitida da assessoria de imprensa da prefeitura de Balneário Camboriú, recebi o convite para integrar a equipe do jornal que havia nascido há poucos meses em 1991.
Me juntar àquela equipe foi um desafio. Tanto que nos primeiros dias de trabalho, eu mal conseguia falar. A primeira pauta, lembro ainda, era cobrir o indicativo de greve dos serventuários de Justiça de Balneário Camboriú. Apesar de já possuir alguma experiência em jornalismo, eu não sabia por onde começar: “será que eles iriam me aprovar?”.
Do tempo em que trabalhei no Jornal Página 3, aproximadamente uns seis anos, até hoje, não é exagero dizer que não houve ninguém, ou nenhuma história que não tivesse sido contada. Tudo foi notícia: dos “trecheiros” – (moradores de rua) a artistas, juristas, políticos, delegados, prestadores de serviços, educadores, artesãos, juízes, promotores, bandidos, líderes comunitários, camelôs, comerciantes, estudantes, donas de casa, hoteleiros…”todo mundo”, teve parte de sua história contada nas páginas semanais do jornal Página 3.
Das histórias que eu contei, relaciono algumas abaixo, mas como já citei a primeira matéria que fiz, lembro também da última. Uma pauta sugerida pela Marlise, sobre as mães especiais, para ser publicada no Dia das Mães. Passei um dia inteiro conversando com as mães de portadores de necessidades especiais. Foi meu último, dos inúmeros aprendizados em minha experiência no jornal Página 3.
Seguem algumas destas…Estórias esparsas
Trabalho artesanal
No início do jornal havia uma sala com duas máquinas de datilografia, um aparelho de telefone fixo, e uma máquina fotográfica e um carro. Quando comecei a trabalhar, escrevia minhas matérias à mão e depois, quando alguém desocupasse uma “máquina de escrever” eu passava a limpo.
Da máquina de escrever, os textos, meus da Marlise e do Bola iam para as mãos do Marzinho que os passava para um computador, o único, e imprimia as matérias em papel A4, em formato de colunas que eram recortadas com uma tesoura em tiras e depois coladas numa folha de papelão já riscada (diagramada). feito isso, toda a parafernália, ou melhor, o PastUp era levado de carro para Blumenau para ser transformado em fotolito; e aí sim ir para a impressão.
Para a confecção do PastUp, a Marlise distribuía e numerava as páginas numa mesa comprida. Eu, a (Pati) Patrícia Zutter de Mello e o Hilton Siqueira, (chargista e diagramador do Página 3), colávamos as tiras no PastUp. Isso acontecia sempre na sexta-feira, dia em que os anúncios já programados pela Pati e as matérias já deveriam estar finalizados. No sábado de manhã, muito cedo, os jornais já estavam distribuídos por toda a cidade.
Sob ameaça
Vivi maus bocados no Página 3. Sob a liberdade de expressão pregada pelo Página 3 e a retaguarda jurídica do mesmo, me descobri quase uma jornalista investigativa. E isso trouxe ameaças, não só pessoais, como para para a direção do jornal.
Certa vez, eu o fotógrafo Ademir subimos um dos morros da cidade para investigar uma invasão de terras que estava gerando a depredação do mesmo. Entrevistando os novos moradores dos barracos ali instalados, descobri que eram locatários de alguém que chegara primeiro e se dizia dono do morro. Para morar alí, os inquilinos tinham que pagar um valor em dinheiro, e se não pagassem o “dono” tirava-lhes o fogão a geladeira, a TV…
Não foi difícil encontrar o dono do morro. No entorno de um barraco maior estavam amontoados os móveis e eletrodomésticos que o mesmo tomara em pagamento pelo aluguel dos favelados. Mas não conseguimos chegar até ele. A uma distância de uns 50 metros, aproximadamente, armado, ele gritou: “Sumam. E digam para o Marzinho que eu conheço ele e sei onde ele mora”. Fomos embora, eu e o Ademir, e o Marzinho publicou a matéria.
Fiquei sabendo anos mais tarde, que o referido morro está tomado de edifícios e que aquela área hoje é a mais cobiçada pelos investidores da construção civil.
Ameaça de elite
Em outra ocasião, lá por 1994, um funcionário da Câmara de Vereadores me ligou dizendo que uma construtora da cidade estava negociando com um grupo de vereadores ligados ao então governo municipal, a aprovação de um aterro nas margens do Canal do Marambaia na avenida Atlântica. A idéia era aterrar uma parte do canal para um trabalho urbanístico e a construção de uma ponte sobre o mesmo, que daria acesso a edifícios que seriam construídos na “orla” do canal.
Cada vereador envolvido receberia R$ 16 mil reais para aprovar o projeto de Lei. Na noite da primeira votação, eu e o fotógrafo Ademir Freitas estávamos lá. A assessora da construtora que intermediava a negociação também. Inexperiente na arte da falcatrua, ela se contradisse na resposta à pergunta feita de “supetão” e acabou confirmando a propina.
Ainda dentro da Câmara, depois de adiada a sessão, um vereador “esquentado” que não lembro o nome (ainda bem) veio até mim e o fotógrafo Ademir, fez calúnias sobre a vida pessoal do dono do Página 3, e colocando a mão ao lado da coxa direita mostrou o que seria uma arma, dizendo: “não brinque comigo, menina!”. A matéria foi publicada. Dali a alguns anos eu fui embora de Balneário Camboriú, mas se eu não me engano o Canal do Marambaia foi aterrado.
Confiança no Página 3
Era sexta-feira, por volta das 17 horas. Estávamos todos cansados, mas o jornal estava pronto para ser levado para a impressão quando recebo uma ligação do então juiz de Direito de Balneário Camboriú, Ariovaldo Pereira. O assunto era urgente.
Alguém que eu não lembro me levou às pressas para o Fórum, onde já não havia mais ninguém, exceto o juiz que acionara o jornal. A notícia foi estupefante, não só pelo seu teor, mas por seu contexto.
O Juiz chamou o jornal para informar que havia terminado de sofrer uma correição e foi afastado por tempo indeterminado para apuração de uma denúncia contra ele. O magistrado foi acusado de receber um apartamento na avenida Atlântica, para fazer “vistas grossas” à uma ação do Ministério Público contra outra construtora famosa na cidade, que queria aterrar parte do Rio Camboriú para a construção de uma estrutura que abrigaria atividades náuticas.
Creio que o Doutor Ariovaldo Pereira, não retornou a seu posto. Fiquei sabendo anos mais tarde que voltara a advogar, com respeitável ‘status’, no oeste de Santa Catarina.
A volta de Castro e o primeiro celular
A autorização para que Luis Castro voltasse ao cargo de prefeito se deu numa sexta-feira. O jornal Página 3 já estava pronto. Eu estava em uma reunião de artesãos quando soube. Corri imediatamente para a redação do jornal para dar a notícia ao Marzinho e a Marlise, (donos do jornal) e ver se ainda dava tempo de publicar a matéria naquela edição.
O Marzinho ligou para Blumenau onde o jornal seria rodado para eles segurarem a edição e colocou um celular, o primeiro que eu vi em minha vida, em minha mão, me mandando para o Fórum para cobrir a matéria.
O aparelho, do formato de um tijolo, era o objeto mais inóspito que já me deram para eu trabalhar e eu creio que foi o primeiro celular a ser fabricado. Eu não sabia ligar, nem desligar, não sabia onde eu deveria falar e nem por onde deveria ouvir. Mas de repente, o tijolaço tocou.
O juiz ainda não tinha assinado o documento. Os corredores do Fórum estavam cheios de políticos aliados a Castro e, que eu lembro, os únicos adversários que se faziam presentes eram os denunciantes e então vereadores Santa, Lorenzatto e Dado Cherem. Sentada no degrau da escada do Fórum eu comecei a tremer: afinal o celular havia tocado e eu não sabia atender.
Foi aí que eu passei o aparelho para o Santa e pedi: atende para mim. Ele atendeu e me devolveu. Era o Marzinho dizendo que eu tinha que ligar para o Tigrão (que tinha um programa na rádio Menina FM) para passar a informação. Eu não fiz isso.
Pedi para alguém pedir para o Tigrão me ligar. Ele ligou e pediu para eu entrar ao vivo via celular com a informação da volta do prefeito ao poder. Ah! se eu estava tremendo para atender um celular, quais as condições que eu tinha de dar a notícia ao vivo. Também não o fiz.
Relatei o que estava acontecendo para o Tigrão e voltei para a redação do jornal Página 3 para escrever a matéria. Até hoje eu tremo quando toca o celular. E o Luis Castro governou até o final do mandato.
Memórias afetivas
O tempo em que trabalhei no Página 3 foi intenso, não só profissionalmente, mas pessoalmente. Neste anos, formei vínculos de amizade que cultivo até hoje. Não éramos apenas colegas, me sentia da família.
Foi assim com a Marlise, com quem dividi durante seis anos sugestões de pautas, desabafos pessoais, emoções, tristezas e alegrias. sentávamos, para trabalhar, uma ao lado da outra, e isso reforçou ainda mais minha ligação com ela, a quem até hoje considero uma irmã.
Para com o Bola desenvolvi um sentimento de respeito e irmandade. Muitas vezes íamos juntos para cumprir as pautas: eu entrevistava, ele fotografava; quando ele via que eu não dominava muito o assunto, ele interferia e salvava minha matéria. O Bola para mim era aquele “cara gente boa”, em quem eu podia confiar, mesmo não compartilhando assuntos privados.
E a Patrícia Zutter de Melo, ah, a Pati. Era como uma irmã mais nova com quem eu tinha toda a liberdade de ser. Trabalhávamos sério, mas quando era para rir, era para valer. A leveza da Pati amenizava a pressão do jornalismo sério que fazíamos, e pessoalmente, das dificuldades que eu enfrentava na minha vida particular.
Já o Marzinho, sisudo e reclamão, eu admirava pela coragem em enfrentar os poderosos denunciando corrupção e roubalheira. E isso era inspirador para que eu também fizesse o mesmo. Tive no trabalho sério do Marzinho, um grande referencial para a minha vida profissional.
Não sei o nome dela, talvez Sueli, pois só a conhecia por “Sú”. Era a funcionária da casa da Marlise e do Marzinho, responsável pelos nossos cafés e almoços, (todas as quintas e sextas-feira eu almoçava no jornal). A Sú mantinha o equilíbrio do ambiente, sem seus serviços tudo seria uma bagunça, e sua gargalhada larga e os olhos brilhantes estão até hoje na minha memória.
Dois colegas respeitáveis: Cristiano Maia e Ademir Freitas. Com eles eu rodei Balneário Camboriú de norte a sul entrevistando pessoas. E nessas andanças nos tornamos cúmplices do jornalismo. Eles dirigiam o carro do jornal e fotografavam. Nossa sincronicidade era tão grande, que no final de uma entrevista, vínhamos conversando e eles sabiam exatamente o que eu iria escrever.
E o Hilton Siqueira, grande chargista e roqueiro. Todas as sextas feiras eu me alegrava com a chegada dele para diagramar as páginas e, com sua arte ácida, retratar nossas matérias em suas charges. Era o melhor dia da semana, pois víamos ali a finalização do nosso trabalho. E era na sala de montagem do jornal que tudo acontecia. A finalização da edição semanal, as conversas sem fim, as risadas, o rock, e a consolidação das lembranças encravadas até hoje na minha memória.
Nota da Redação: Tita Sobanski foi repórter do Página3. Atualmente reside em São Francisco do Sul, onde trabalha como jornalista.