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“Contar a história pelo lado de dentro” por Caroline Cezar

Quando escuto meu pai contando num vídeo amador que “o jornal nasceu numa pequena sala da Rua 600” entendo o que ele diz, e como associa a sede física ao nascimento (e da sede física emenda no bar da esquina, na sala apertada, nos processos judiciais e por aí vai). Se perguntar para cada um que estava enredado naquele nascimento, serão no mínimo “douze” versões diferentes – “douze” para honrar minha avó Beatriz, que certamente traria a sua cheia de detalhes incríveis que só ela viu.

Quando o jornal nasceu eu tinha de 12 pra 13 anos, e lembro do casaco verde que vesti para ir à festa de lançamento no posto de gasolina do Jaison Barreto. Não consigo mais acessar o que pensava a menina sobre aquele acontecimento, lembro das primas, do dindo, outros parentes, uma gente chata (políticos), e uma gente legal (meio roqueiros, assim). Eles, os donos do jornal, tinham um estilo punk rock anos 80 pós ditadura, apesar de que já era década de 90, e aparentemente, a ditadura era coisa do passado. Eles eram super escrachados, e folheando as primeiras edições do jornal dá para identificar esse humor muito pitoresco do Bola e do Marzinho, com minha mãe e Tita trazendo aquela elegância maior pra tudo.

Disse Neruda, que
“há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
há fábricas de dias que virão…”

…por isso quando penso no nascimento do jornal penso numa coisa que vinha sendo forjada a ferro e fogo há muito tempo, e isso impregna de carga emocional o que profissionalistas chamariam hoje de “empresa”. Nas minhas fotos de bebê tem sempre um jornal por perto e fui gestada dentro de uma redação. Nos primeiros anos de vida cresci com o medo da minha mãe e o fantasma de fugir de uma ditadura que mata, até que um episódio real de invasão no apê fez com que eles fugissem para um sítio próximo à capital porto alegrense.

Todas essas memórias se embaralham na minha cabeça-coração em desordem cronológica, mas sempre tinham muitos jornalistas compondo a cena da minha vida, a principal, minha mãe, MATRIZ, uma mulher sobrevivente da perda de uma filha (logo antes que eu) e de uma cultura patriarcal cruel com mulheres, que incutiu durante séculos conceitos românticos sobre casamento, maternidade, trabalho e muitos tem-que-ser impossíveis de cumprir. Além da tortura cultural a qual estava inserida, ela teve a experiência de perder dezenas de amigos e sofrer na pele castigos físicos e psicológicos por ser uma jornalista em um governo ditatorial, coisa que hoje até dizem que não existiu. É, tá todo mundo louco?

Além dos episódios dramáticos há uma infinidade de experiências, como viajar Brasil e Uruguai afora cobrindo esportes, e dividir a mesa com ninguém menos que Mario Quintana, que levava seu almoço pra redação do Correio do Povo. Depois de algumas redações em Porto Alegre, outra mudança, pro Rio de Janeiro, onde depois de um tempo sendo “só mãe dona de casa”, resolveu voltar ao mercado, e caiu dentro de O Globo. Subiu favela, festejou Diretas Já me levando pela mão em idas e vindas do jornal, um conflito constante entre trabalhar fora eou cuidar das crianças, porque cuidar de filho era considerado sub função e um trabalho meio solitário mesmo para as mulheres. Lembro muito dela nos levando à praia e fazendo festas coloridas cheias de coisas pintadas à mão. Também lembro do bilhete que ela guardou escrito por mim: “não volte a trabalhar no jornal, por favor”. O que tem nas entrelinhas da fala de uma criança? Eu imagino o peso desse bilhete para ela e as dúvidas na cabeça, e como pesa o peso de uma cultura.

Passamos sete anos no Rio e nova mudança, Santa Catarina, fugindo de novo, violência e assaltos chegando muito perto e deixando pouco espaço para andar em paz. Quando chegamos em BC eu tinha nove anos e uma sensação indescritível ao andar sozinha de bicicleta nas ruas de terra. Lembro que aqui minha mãe fez mais um monte de coisas, bolsas artesanais, saídas de praia, tênis pintados à mão, a casa sempre cheia de plantas, tem uma talento para as artes essa mulher; mas sempre com a ideia fixa de “ter que trabalhar fora para ser alguém”. Lá foi ela, redação do jornal de Santa Catarina, frequentei algumas vezes, na galeria Maxim, frente ao mare, enviavam as matérias por telex, aquele papel amarelo todo furadinho que fazia um barulho danado, fizemos vários carnavais com aqueles rolos de telex usado servindo de serpentina. Ali estava o Bola também, e começou a se tornar concreta a ideia de criar o próprio jornal, afinal trabalhar para os outros (ou escrever o que os outros querem) é um puta saco. Não sei quanto tempo levou para isso acontecer, mas eles fizeram mesmo, Marlise e Bola com a Gelci Velt, eram três os fundadores, com meu pai, a Pat e todo um backstage familiar de avós dando o suporte inicial. Três, número propício, forte e associado diretamente à criatividade e comunicação, tinha que ir parar no nome, Página3.

adolescência

Gente, não lembro muita coisa dessa fase inicial. Só que eu era uma adolescente, surfista, solta na vala na BC loca de meo deos. Eles trabalhavam muito e eram jovens, dispostos, cheios de energia e um fio de humor ácido muito presente permeando tudo. Se divertiam e os perrengues não eram poucos, grana escassa, muito trabalho, tecnologia-carroça, muito trabalho, um fazer quase artesanal, muito trabalho, processos, muito trabalho, e por aí vai.

Fui crescendo nesse ambiente, BC era massa, casinha do surfista, praça Tamandaré, sorvete na Effes, tempo passou e acabei na faculdade de Jornalismo, também fiz meu primeiro filho e me formei com a criança no colo. Ao entrar na vida acadêmica já trabalhava no jornal, comecei com pesquisas eleitorais e de opinião, mas não foi meu primeiro emprego, antes fiz a revisão de um dicionário de expressões inglês – português, assinado pelo professor José Ricardo, colunista do jornal; e servia comida chinesa num restaurante de shopping.

Todas minhas relações eram atravessadas pelo jornal, desde o primeiro namorado (e todos que vieram depois), pai mãe irmã sobrinho primo tios tias avó, todo mundo fazia alguma coisa junto no jornal. Meus primeiros filhos -Davi e Sara- cresceram ali, na redação tinha cama comida calor colo bronca piada. Nunca entendi direito quando pessoas aconselhavam separar trabalho da vida pessoal. Sempre foi misturado pra mim. Misturado tipo junto, era uma coisa só. Nem sei o que destacar nessa longa história, foram muitas mas muitas fases mesmo, tanta gente que passou tanta comida a gente comeu junto tanto aperto nos fechamentos tanta piada interna tantos dramas também, era uma vida comunitária, a gente partilhava a vida e o trabalho fazia parte.

vida adulta

Passamos por grandes transições, fases, ritmos, ajustes, aprendizados. Talvez a mais marcante tenha sido a do jornal impresso para o on line, que ano era? Gente, não sou boa para datas, mas iniciar o noticiário on line tomou muito tempo e energia, era gratificante e exaustivo, e não foi mudar uma coisa para a outra, ficamos por um bom tempo fazendo os dois, acumulando funções, diagramando capa e tuitando, dormindo muito pouco, sempre alerta, sempre on line, num ritmo meio frenético sem noção, como pedem os (re) inícios apaixonados. Mas a cada eleição ou tema polêmico eu brochava muito, lembro que parte da equipe, vulgo Waldemar nem aí, mas eu, minha mãe, a Fab, a Dani ficávamos chocadas, muito sentidas com tanto lixo, falta de elegância e troca nos comentários na rede. A falta de profundidade e de educação nesse meio me dava preguiça, pra não dizer outra coisa. Lembro que fui mudando de onda, troquei o nome da coluna que assinava de Poucas e Boas, quando era bem bravinha, para Ex pressão. Os temas mudaram, estava mais a fim de ficar na praia com meus filhos, cozinhar, plantar e escrever sobre atemporalidades. Fui morar no mato e a terceira filha selou esse outro tempo, parir ela em casa, sozinha, me abriu uma portona para esse lugar além palavras, que continua se fazendo e se expandindo até hoje. Olhar para a gestação maternidade e criação de outro lugar me expandiu, e com minha amiga de sempre Nana Góes, fizemos uma nova coluna, a Mãe na Roda, e muitos cursos e vivências na área. Essa fase também passou, mas todas elas estão em mim. Tive mais um filho, o Bento, que morreu, e aprofundei meu silêncio para remodelar o jeito de olhar e escrever o mundo. Minha escrita mudou de novo, minha relação com o tempo também, a poesia me enche e me esvazia e hoje desse lugar só tenho a agradecer tudo que experienciei e experencio nessa criação de meu pai e minha mãe. Tudo que eu aprendi sobre a palavra foi nessa escola, a minha base sólida, minha iniciação, meus bloqueios, minha autonomia e singularidade. Também aprendi sobre humor, improviso, imperfeições, exigência, auto estima, coragem, desejo, respeito, descanso, relações, comunidade, amor. Sou grata, muito grata e reverencio essa história viva em constante transformação. Um salve ao Página3 e as histórias entrelaçadas!

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