— Lembrando Guido Wilmar Sassi —
Publicado em primeira edição no ano de 1964, pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, “Geração do Deserto”, de autoria de Guido Wilmar Sassi, está completando 60 anos. Segundo a crítica, o livro não despertou na época o interesse que mereceria, talvez pela circunstância negativa de ter surgido num ano turbulento em que se implantava o regime autoritário no país e a tensão social reinante era grave. Aos poucos, porém, a obra se impôs, mereceu diversas edições, tem sido objeto de inúmeros estudos e foi adaptada para o cinema pelo cineasta Sylvio Back, em 1971, com o título de “A Guerra dos Pelados.” O tempo fez justiça e compensou a frieza com que o livro foi recebido.
“Geração do Deserto” é um romance histórico, o primeiro que surgiu sobre o Contestado, e que abriu os caminhos para as produções posteriores. Ainda que seja obra de ficção, os eventos e personagens mais significativos são reais, contracenando no mesmo plano com outros que foram criados pela fértil imaginação do ficcionista. Escrito em linguagem clara e direta, o romance descreve em linhas gerais tudo que aconteceu de importante durante o conflito que teve início em 1912 e perdurou até 1916, com passagens épicas mescladas com outras românticas, a pura violência e o amor verdadeiro. Transparece uma evidente simpatia do autor pelos seres anônimos, personagens sem história e sem importância, envolvidos pela guerra brutal que os cerca e orienta suas vidas por caminhos nem sempre desejados. Sabe pintá-los com ternura e emoção.
O romance foi dividido com habilidade em quatro partes, cada uma delas focalizando os momentos decisivos da guerra. Assim, a primeira diz respeito a Irani, onde se feriu o encontro das tropas oficiais com os revoltosos comandados pelo monge José Maria, ocasião em que tanto este como o coronel João Gualberto, comandante da força repressora, pereceram, fato surpreendente e que imprimiu ao conflito rumos totalmente inesperados. O combate fatídico aconteceu a 22 de outubro de 1912, embora os relatos registrem que o monge tudo fez para evitá-lo, iniciando-se aí a guerra até então esboçada. José Maria, o monge guerreiro, seria na verdade Miguel Lucena de Boaventura, desertor da Força Pública do Paraná, e que residia no distrito de Espinilho, no município de Campos Novos, onde se notabilizara como “remedieiro” de múltiplos recursos. Era um homem baixote e corpulento, retaco, de pernas e braços curtos, mas infundia respeito e admiração, sendo seguido sem pestanejar pelos fanáticos. Outros pesquisadores afirmam que seu nome seria outro, segundo consta em processos judiciais.
As partes seguintes dizem respeito a Taquaruçu, Caraguatá e Santa Maria. Entre esses redutos e outros menores decorriam as incessantes hostilidades, cobrindo enorme extensão territorial. Os jagunços, conhecedores do terreno, praticavam uma guerra móvel, espécie de guerrilha, em que a surpresa das tocaias desnorteava o inimigo. Atiravam de cima das árvores, nos desfiladeiros estreitos, nos carreiros fundos, escondidos pelo mato e as baixas eram numerosas. Estimulados pela crença no retorno de José Maria, continuador do monge João Maria, os fanáticos lutavam como feras. Em suas almas toscas se misturavam o misticismo, as crenças e as superstições, o ódio aos paranaenses invasores, aos “americanos” (aí entendidos os funcionários da Lumber e das empresas colonizadoras) e aos “peludos” em geral e crepitava a esperança de um mundo melhor em que pudessem viver em paz nas suas terras sem que fossem incomodados pela Companhia Lumber e pela estrada de ferro. Mas a Guerra Santa, como todas as demais guerras, acabou em imensa tragédia. Corre então a notícia da rendição dos revoltosos. “Confirmada a notícia – escreveu o romancista, – a rendição aceita, começam a chegar as primeiras levas de jagunços. Gente aleijada, semimortos de fome, disenteria, tifo e varíola; a maioria velhos, mulheres e crianças. Pelo acampamento desfilou aquele ror de trôpegos, macilentos e esfomeados – o saldo de quatro anos de guerra” (p. 152). Mortos ou aprisionados os líderes, o movimento se extinguiu mas os acontecimentos marcaram para sempre a alma do sofrido povo da região. E Guido Wilmar Sassi, neste romance seminal, registrou como ninguém os percalços do maior movimento de insurgência civil da história nacional. A única e verdadeira revolução acontecida no país.
GUIDO WILMAR SASSI
Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de maio de 2002, o escritor catarinense Guido Wilmar Sassi. Nascido em Lages, a 15 de setembro de 1922, criou-se em Campos Novos, depois se transferiu para Florianópolis, onde teve destacada atuação no Grupo Sul, fixando-se mais tarde, em definitivo, na antiga capital federal. Romancista, cronista e, acima de tudo, contista, estreou com o livro de contos “Piá” (1953), acatado com entusiasmo pela crítica e pelo público. Publicou depois a coletânea de contos “Amigo Velho” (1957), cujo conto-título é verdadeira obra-prima, os romances “São Miguel” (1960) e “Geração do Deserto” (1964), este último vertido em filme por Sylvio Back com o título de “A Guerra dos Pelados.” Publicou vários outros livros, incursionando inclusive pela ficção científica, participou em importantes antologias, até mesmo no Exterior, e teve obras traduzidas para outros idiomas, Em ordem cronológica, foi o segundo expoente da corrente regionalista dos Campos Gerais em nosso Estado, nos passos do fundador, Tito Carvalho. É considerado o iniciador do ciclo do pinheiro na literatura nacional. Sua obra tem fundo sociológico, retratando com precisão o homem do Planalto, e acentuado sentido humano. Guido foi o único escritor catarinense das últimas gerações a granjear renome nacional. Sua perda deixou consternados os meios culturais, embora sua obra tenha lugar destacado e perene em nossas letras.
REMINISCÊNCIAS
Em janeiro de 1978 eu chegava a Blumenau para assumir a 4ª. Promotoria Pública da comarca. Logo em seguida o então reitor Arlindo Bernardt me convidou para lecionar na Faculdade de Direito da FURB. Lá eu conheci Vilson do Nascimento que prestava serviços no departamento da imprensa. Unia-nos o gosto pela literatura e logo nos entrosamos. Ele escreveu várias vezes a meu respeito em periódicos universitários e de fora.
Pouco depois ele se transferiu para a extinta Fundação “Casa Dr. Blumenau” em cuja gráfica eu vinha publicando meus livros. Ele se interessava pelo processo, acompanhava a produção do livro, dava palpites e opiniões sempre procedentes e muitas vezes acatados. Dedicou-se com entusiasmo ao trabalho cultural da Fundação.
Passamos a jantar juntos e com frequência nos restaurantes da cidade. Conversávamos sobre tudo e maquinávamos eventos culturais como lançamentos de livros, exposições de artes, palestras, encontros e visitas de escritores e outros do gênero. Muitos deles foram realizados e com bastante sucesso. Sempre bem-humorado, ele tornava divertidos nossos jantares.
Crítico de artes, vinha analisando obras expostas na cidade ou em evidência nas páginas do “Jornal de S. Catarina.” Sabia como poucos ler uma obra artística e avaliar suas qualidades. Também era poeta modernista, filiando-se às mais arrojadas correntes e dando ênfase a uma ilimitada criatividade, não faltando boas doses de humor. Alguns de seus poemas chocavam espíritos mais conservadores e eles protestavam junto ao jornal. Lembro-me de uns versos em que um velho burro comia flores de plástico debaixo dos degraus da escada. Irritado, um leitor o criticou em carta ao jornal e Vilson se divertiu com a reação dele. Lia para nós a carta e soltava sua inconfundível gargalhada sincopada.
Quando a cidade recebia escritores e figuras de renome ele participava de tudo. Assim aconteceu com Sílvio Meira, Joaquim Inojosa, Darcy Ribeiro, Jorge Medeiros da Silva, Nelson Bravo e outros. Todos gostaram dele e sempre enviavam mensagens quando se comunicavam comigo.
Mas o tempo passou e fui convidado para o cargo de Secretário Adjunto da Justiça no Governo Pedro Ivo. Transferi a residência para Florianópolis, em caráter provisório, e lá permaneci por três anos. Muito insisti para que ele fosse para a capital. Pretendia colocá-lo no setor de imprensa da Secretaria, mas ele resistiu. Blumenau era seu chão, lá se sentia em casa e não arredou pé.
Foi nessa época que soube que ele havia se casado. Fiquei deveras surpreso. Típico intelectual boêmio, nos moldes daqueles das primeiras décadas do século passado, ele me parecia o ser menos vocacionado para o casamento. Mas casou, teve uma filha que deve estar moça e, segundo depoimentos insuspeitos, foi pai e marido exemplar. A vida é mestra em surpresas.
E então eu estava aqui, quieto no meu canto, quando chegou a notícia inglória, dura e seca como costumam ser as más notícias: Vilson do Nascimento havia falecido. Por que tantos amigos, de perto e de longe, têm que partir antes de nós? Vão deixando um imenso vazio. Tinha 80 anos.
Não pude comparecer à despedida. Soube pela Profa. Sueli Petry, presente ao ato que ele estava elegante no seu esquife envergando terno e gravata, trajes que, pelo que me lembro, nunca usou. Tinha a face serena e parecia tranquilo para a derradeira jornada.
Dizem que a pessoa só morre quando ninguém mais se lembra dela. Fique tranquilo, meu amigo, enquanto eu estiver por aqui me lembrarei sempre de você e sua inconfundível gargalhada sincopada continuará ecoando nos meus ouvidos.